Ativos estratégicos e como usá-los/ou/Tecnologia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
- Jéssica Vianna
- 16 de jun.
- 9 min de leitura

Dia desses, na livraria Travessa, em Niterói, o vendedor disse ao rapaz, no corredor atrás de mim: - “É muito louco ler Milton Santos, porque parece que, no século passado, ele já estava descrevendo exatamente o mundo em que estamos vivendo agora!”, ao que o cliente respondeu - “Ótimo, estou fazendo o meu mestrado, acho que vai ajudar, vou ler, obrigado.” - e eu me senti abraçada por este momento, porque desta vez não fui eu quem disse isso em voz alta.
Frequentemente, livros que não tenho mais ecoam sob a luz de eventos cotidianos, por vezes absurdos, que testemunho nessa vida. A voz perturbada que só existe dentro da minha cabeça vocifera Yves Lacoste lá no fundo, o tempo todo, porque vejo em tudo a Geografia e isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra [1]. Em mesas de café com amigos queridos, reverencio com a minha própria existência essa entidade que me acompanha com o peso imenso de um saber que considero ancestral: Milton Santos, geógrafo brasileiro que conceituou o “meio técnico-científico-informacional”, que investigou a natureza do espaço, do tempo e da técnica, as implicações do processo de globalização, e o mundo ao nosso redor com uma lucidez impressionante. Milton Santos deixou uma obra extensa e absolutamente genial, atemporal, atual e histórica, que tristemente perde cada dia mais espaço nas bibliografias que usamos em detrimento de uns tantos gringos que estejam mais na moda.
Aqui não há tempo pra desenvolver uma ideia que há muito me assombra, da internet como um espaço geográfico, nos moldes do que formulou Milton Santos, dotado de sobreposições de estruturas, de disputa e poder e construção da identidade que atinge a materialidade do território de muitas maneiras, desde como o sujeito caminha sobre a terra, como se relaciona e se alimenta, como produz arte, até as mega instalações que compõem a infraestrutura de uma cidade, de um estado, de um país e por fim, de todo o globo. Direi apenas que o conjunto das técnicas que condicionam a experiência humana no agora, a tecnologia disponível à humanidade em nosso próprio contexto histórico, esse amontoado de saberes geográficos (determinantes da identidade e do território, das estruturas presentes no tempo e no espaço) precisam ser compreendidas à luz do projeto capitalista e, com urgência, apropriadas por quem possa pretender antagonizar o colonialismo em sua era digital, o macabro imperialismo em seu momento mais hightech, o que eu desejo que façamos, menos por desejar construir um mundo novo do zero, mais por desejar sobreviver e garantir alguma autonomia, alguma dignidade, algum nível de soberania e sobriedade que nos levem a ser uma nação que pavimenta seu futuro com as pedras fundamentais da própria história, que sabe de onde vem, sabe pra onde e como vai. Para isso, vou citar aqui alguns pensadores contemporâneos, cujos trabalhos acompanho com intenso interesse, que considero essenciais para analisar, sob a perspectiva brasileira, o atual estado das técnicas, e que podem sugerir aplicabilidades práticas aos ativos nacionais mais estratégicos em um contexto local e mundial de guerra.
TECNOLOGIA, SOBERANIA E SEGURANÇA PÙBLICA
Na biblioteca Mário de Andrade, um mês atrás, em São Paulo, eu ouvia o Deivisson Faustino repetir mais uma vez que "o racismo é um elemento sem o qual a gente não compreende o capitalismo" enquanto, numa aula brilhante, ao lado de Walter Lippold, durante a Cryptorave - o maior evento gratuito e aberto sobre segurança e privacidade do mundo- descortinava as sangrentas consequências do poder tecnológico aplicado ao genocídio dos Condenados da Terra [2] e construia, como em teia, uma nova camada de compreensão do Colonialismo Digital - Por uma crítica Hacker Fanoniana [3], obra que Lippold e Faustino publicaram juntos pela Boitempo e que complexificam no desenrolar diário de suas carreiras devotadas e suas militâncias super ativas. Na semana passada mesmo, acompanhei mais uma aula do Walter Lippold gratuita e aberta - parte do minicurso “Corporações, Estado e Políticas Sociais” [4] do núcleo Politiza da UNB - enquanto ele denunciava, uma vez mais, o processo de acumulação primitiva de dados, por BigTechs que capturam informações de todas as formas possíveis, seja através das redes sociais, da Internet das Coisas, da web, ou mesmo de plataformas como a Amazon Web Service (do Jeff fucking Besus) que, pasmem, hospeda e processa todos os dados do DATASUS, incluindo a rede nacional de Dados em Saúde. A engenharia desses dados, sob o domínio das BigTechs serve a propósitos colonialistas e alimenta as mesmas forças capitalistas (as mesmas necrocorporações, como Walter propõe que as classifiquemos) que produzem drones, robôs, mísseis, tecnologia aeroespacial, de geolocalização ou reconhecimento facial que tem hoje a mesma aplicabilidade nos contextos urbanos da periferia do sistema que nos campos de guerra declarada pelo mundo: o extermínio dos povos não-brancos.
Vale ressaltar, como sempre reforça Lippold, que softwares não existem sem hardware. Caminhemos, portanto, sem muitas delongas à conclusão antiga de que a exploração de matérias primas, e as disputas por vantagens geográficas, nos moldes mesmo do colonialismo, para garantir a cadeia de suprimentos e a infraestrutura necessária ao sistema capitalista, agora pós-globalizado, continua a fazer sangrar o Sul Global, muitas vezes revestida num discurso de desenvolvimento tecnológico e até de missão (intervenção militar) civilizatória. Não se engane, porém, você que não teve a bunda picada pelo saber geográfico, como eu que a mineração de terras raras, a exploração de recursos geográficos e energéticos, de ativos estratégicos ao mantenimento do sistema capitalista não foram as causas fundamentais das maiores atrocidades e de todas as guerras que o mundo já assistiu. É precisamente esta amálgama das necessidades imperialistas que está no cerne dos genocídios que assistimos ao vivo e acompanhamos em tempo real na Palestina, na República Democrática do Congo e nas favelas do Rio de Janeiro.
Uma vez dito que o Brasil é abundante em terras raras, em recursos hídricos, em Petróleo (cujo acesso agora dificultado com a escalada da guerra no oriente médio vale ainda mais) e que os portos brasileiros bem como toda a condição geográfica do Brasil são estratégicos para o comércio Global e para a manutenção do atual estado das técnicas de que dispõem as grandes potências para fazer a guerra, claro está, que somos um território em disputa. Enquanto, nos EUA as Big Techs go nuclear, em seus laboratórios sul americanos, they turn into banks, experimentando modelos alternativos ao sistema Swift com suas criptomoedas, seus softwares e suas fintechs, dispondo dos incentivos históricos e sem precedentes que o Brasil oferece à lavagem de dinheiro, por exemplo através das BigBets. Mas o Brasil tem ainda um ativo estratégico gigantesco, dentre os mais valorizados do planeta terra: Uma posição central na mega-infraestrutura logística do tráfico internacional de armas e drogas.
No 2º Seminário Internacional de Segurança Pública, Direitos Humanos e Democracia, organizado pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE) [5] - Sim, parece uma piada - , em parceria com o IDP (onde prontamente me inscrevi num curso de Lobby, porque aparentemente eles sabem o que fazem nesta área) - que passei a noite de sexta-feira, assistindo indignada, uma mesa me chamou atenção, e nem foi a da mulher, representante da Amazon Web Service (sim, aquela empresa que processa os dados até do DATASUS) onde ela glorifica a uberização e com orgulho ostenta a participação da AWS na expansão do Ifood, da Uber, modelos de negócios que geram enormes lucros e precarizam ao máximo as condições de trabalho, frente ao Leandro Demori mais passivo e mais cortês jamais visto antes, que nem de longe pareceu aquele que na TV esbraveja contra bilionário e se preocupa com a soberania nacional, mas sim, me chamou atenção a mesa em que entrevista-se o ex-prefeito de Nova Iorque sobre segurança pública e combate às máfias a partir da NY nos anos 1980, onde ele comenta os recentes esforços do lobby norteamericano, retumbante através das bocas dos líderes bolsonaristas, sempre acusados de envolvimento com as milícias brasileiras desde sua raíz, de que sejam classificadas como grupos terroristas facções como o PCC e o Comando Vermelho, o que, apesar de ferir os princípios da constituição federal, serve um prato cheio para mais uma bravata narrativa que costuma abrir caminhos e permitir a implementação de interesses imperialistas, com todos os possíveis requintes de crueldade, no interior da sociedade civil dos países historicamente explorados pelo grande capital.
O ex-prefeito de Nova Iorque, na sinistra ocasião, cinicamente declara o seguinte: “É possível que o Trump use essa classificação de grupos terroristas para objetivos políticos nefastos no Brasil? É possível. Se alguém acha que não, é porque não está prestando atenção. Se eu fosse brasileiro, ficaria preocupado com os Estados Unidos usando algo que deveria ser uma ferramenta jurídica para combater o terrorismo e transformá-la em uma ferramenta política”, ao que ele, depois de um certo bla bla bla, emenda com um caso de sucesso imaginário estadunidense contra as máfias italianas, por um exemplo aleatório que lhe ocorreu, em Malta. Sim, todo esse texto é pra dizer que eu avisei, e reforçar o que eu já disse. É nesta altura do texto que eu me autorreferencio e te digo pra ler o artigo anterior, aqui neste mesmo blog, onde eu proponho uma análise sobre O Jogo do Bicho Versão BigTech - Dos influencers do Tigrinho à Joint Venture do tráfico contra a CIA [6], onde discuto alguns elementos fundantes da cultura brasileira que, manipulados por interesses estrangeiros através da máquina colonialista, estão a ser cooptados e utilizados para promover o controle da subjetividade e do imaginário do nosso povo, o sequestro dos elementos mais importantes do nosso senso de identidade nacional, e onde aponto o que, pra mim, está óbvio: interesses escusos estão investindo massivamente na indústria cultural para corroer o Brasil desde dentro, porque Soft-fucking-power também importa.
A posição proeminente que o Brasil ocupa na estrutura do tráfico internacional de drogas e armas, a plataforma excelente que pode oferecer para a lavagem de dinheiro em amplas proporções, as riquezas minerais e hídricas que possui em abundância e com pouquíssimas barreiras jurídicas à sua exploração, a produção e a exportação massivas de commódities estratégicas que vão da carne bovina à cocaína, somados ao medo arraigado e antigo da ameaça comunista, à narrativa de combate internacional ao terrorismo e de libertação civilizatória pelo grande capital, na era da pós-verdade, com fortes influências das religiões cristãs e seus delírios coletivos, já fariam do solo brasileiro um grande barril de pólvora, terreno onde paixões e os afetos das forças de massa já seriam o suficiente para fazer engrenar uma espiral caótica da política nos trópicos, mas que acoplados à completa ausência de uma estratégia nacional coesa contra o imperialismo, pode garantir que o gigante da América Latina, esteja em breve no centro de uma sangrenta disputa geopolítica, sem qualquer protagonismo ou projeto, sem as ferramentas tecnológicas necessárias à sua sobrevivência e mesmo até sem aliados.
Quase todos os dias, nos últimos dois anos, eu amargurada me pergunto honestamente que medidas o governo Lula III está tomando para fornecer garantias definitivas à soberania nacional num dos momentos mais perigosos da nossa história recente e no que poderia facilmente ser o seu último mandato. Me calo, é claro, com a boca de feijão, que por acaso tá super caro, sem muitos argumentos que pudessem sustentar alguma esperança de que houvesse algum tipo de projeto que esteja de fato apenas perdido na comunicação, um exercício imaginativo que faço todos os dias entre xícaras gigantes de um café amargo e ruim, que mal cabe no meu orçamento.
Mas vamos supor, para fins de continuar a querer existir, que houvesse parceiros potenciais no Sul Global, com quem negociar os nossos ativos estratégicos pudesse ser uma experiência de justiça e de colaboração internacional. Vamos supor que estivéssemos de fato alinhados, por exemplo, ao bloco das nações que pesam para o lado esquerdo da balança global, os BRICS, e que tivéssemos - como diga-se de passagem: temos - um convite em aberto para fazer parte das Novas Rotas da Seda, o ambicioso projeto Chinês da Beltan and Road Iniciative (cinturão e rota que pretende abraçar o mundo, e escoar, vale dizer, todo tipo de mercadoria, menos seda). Embora não se esperasse muito da presidência brasileira dos BRICS seria o caso de sabermos, ao menos, que o camarada Elias Jabbour foi ouvido pelo governo brasileiro (o que não foi) depois de voltar de um intenso período na China, assunto no qual é um dos maiores especialistas do mundo, onde esteve trabalhando no NDB, o New Dilmãe Bank, também conhecido como Banco dos Brics. A cúpula do bloco, aliás, acontece mês que vem no Rio de Janeiro e se fosse este então o cenário e a possibilidade de construir uma saída à brasileira do subjugo às potências colonialistas, seria o caso de, a essa altura, termos em claras letras a palavra-chave que orientaria a nossa negociação: CONTRAPARTIDA. Seria o caso de estabelecer, afinal, o quê o Brasil quer dos BRICS - Transferência tecnológica; geoengenharia aplicada à transição energética; ferramentas para gestão de crises (climáticas, civis…); softwares livres; datacenters brasileiros; plataformas alternativas ao processamento de dados; tecnologia aeroespacial; mecanismos tecnológicos aplicados à segurança pública; investimento nas universidades públicas, nas indústrias de tecnologia de ponta como as de semicondutores e a indústria bélica, é claro, porque não se combate o imperialismo apenas com uma economia robusta ou uma indústria bem desenvolvida, mas com alto poder de fogo e um projeto nacional bem estabelecido.
Uma vez que esteja claro, o que entregamos de mais precioso ao mundo contemporâneo, e vale dizer que alguns dos maiores ativos estratégicos de que dispomos são os sujeitos que, fruto desta terra, aprenderam a aspirar revoluções com os pés no chão e as mãos na massa, devemos estabelecer o que queremos em câmbio de tantas riquezas potenciais e exigi-lo de uma vez, ou seremos sempre uma colônia de exploração, divididas e usurpadas por capitanias desnecessárias, entregues à própria sorte e hemorragicamente pulsando os espólios da luta de classes desde as envenenadas veias abertas da América Latina até as bocas sedentas dos senhores da guerra.
Em tempo, ativos estratégicos e como usá-los:
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[1]LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve, em primeiro lugar para fazer guerra. Tradução Maria Cecília França – Campinas, SP: Papirus, 1988.
[2]FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Tradução de Márcia Moraes. São Paulo: Zahar, 2022.
[3] FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023.
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