IDENTIDADE NACIONAL EM TEMPOS DE GUERRA: a cordialidade de eleger um arqui-inimigo.
- Jéssica Vianna
- 22 de set.
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RESUMO EXECUTIVO
Um mito obscuro assombra o Palácio do Itamaraty. Mal-entendido e bem camuflado, um fantasma se arrasta pelos corredores da Política Externa Brasileira. O corpo deste conceito, sobretudo agora, em tempos de guerra, deve ser exumado como um cadáver importante e delicado, que jaz nas raízes da identidade nacional. Esta lenda, que Sérgio Buarque de Holanda acabou por eternizar, foi trazida de volta à vida e segue a atormentar a soberania brasileira, contrariando suas predições de que estava “fadada a desaparecer” e seus esforços, já ao fim da vida, para finalmente enterrar “este pobre defunto”[1]. Trata-se do primitivo Homem Cordial. Sob essa chave de leitura sociológica, desmistificando e explorando a figura do Homem Cordial, propõe-se uma análise das amálgamas entre as atuais tensões geopolíticas globais e as disputas políticas internas que estão a ameaçar o Estado Democrático de Direito, a Soberania Nacional e os Direitos Humanos. Recomenda-se, a partir disto, que o Estado Brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, à luz dos recentes acontecimentos, rompa imediatamente as relações diplomáticas e comerciais com o Estado Genocida de Israel e que o corpo diplomático brasileiro concentre suas ações para construir e implementar, com força de emenda constitucional, um novo Tratado Internacional que estabeleça a suspensão automática das relações econômicas de seus países signatários com Estados que violem os parâmetros do Direito Internacional Humanitário a serem estabelecidos, desta vez, a partir do Sul Global, sob iniciativa brasileira. Recomenda-se a cordialidade de eleger um arqui-inimigo.
Palavras-chave: Diplomacia Brasileira; Política Externa Brasileira; Relações exteriores; Direitos Humanos; Sociologia; O Homem Cordial; Israel.
CONTEXTO E DESCRIÇÃO DO PROBLEMA:
Há, por vezes, um abismo entre o que aponta a etimologia de uma palavra e o que esta palavra, sob certo contexto cultural evoca e, portanto, verdadeiramente significa. Para construir o raciocínio até a proposta do rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Israel, algo que pode parecer radical, é preciso, tanto pela etimologia, quanto por toda a confusão que as palavras provocam, voltar às Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda, publicado originalmente em 1936 [2], reeditado diversas vezes ao longo de 33 anos, com mudanças substanciais e notas extensas que tentavam desfazer muitos mal-entendidos sobre o conceito de “Homem Cordial”.
A origem da palavra “Cordialidade” está no latim, é o substantivo “cor”, “cordis” que significa “coração”. Dele vem o adjetivo “cordialis” que, assim como a palavra “cordial” significa, originalmente, “relativo ao coração”. Forma-se um substantivo abstrato, a “cordialidade”, que indica qualidade ou estado, mas isto assumiu diversos significados ao longo da história. Em sua obra, clássica e essencial para compreender a fundação sociológica da nossa identidade nacional, Sérgio Buarque de Holanda, usa a ideia de Homem Cordial para descrever o sujeito que age a partir de seus afetos, a partir do que lhe aflige o coração. A distorção da figura do brasileiro cordial se deu pelo “recalcar dos afetos” (para usar um termo freudiano) que não são socialmente aceitáveis, que não cabem no discurso. Assim, como se o coração de um sujeito estivesse sempre pleno de coisas boas, como se os afetos de ódio não partissem de coração algum, a cordialidade assumiu o significado de dissimulação polida, de civilidade passiva e educada, de diplomacia submissa e ação pacata. Para o Professor Paulo Nicolis Ramires [3]: “a cordialidade é uma relação de mascaramento das violências”. Para reposicionar o conceito e a ação diplomática brasileira frente a um mundo de violências inaceitáveis, é preciso voltar às raízes coloniais da nossa própria história e questionar, afinal, que significado tem a palavra genocídio.
O extermínio do povo Palestino é transmitido hoje em tempo real. Em Gaza, são mais de 65 mil pessoas mortas, quase 70% delas mulheres e crianças (segundo a ONU) [4], mais de 165 mil pessoas feridas [5] e estes números podem ser até 65% maiores, segundo pesquisa conduzida por Michael Spagat, na Universidade de Londres[6]. Neste outubro de 2025 faz dois anos que o Estado de Israel promove os mais violentos ataques a civis na Palestina, bloqueando a entrada de ajuda humanitária, bombardeando hospitais, assassinando jornalistas, ferindo todos os princípios do Direito Humanitário Internacional e cometendo crimes de guerra sob os olhos de todo o planeta.
A Força de Defesa de Israel (FDI) assassinou, em menos de dois anos, mais jornalistas e profissionais de mídia do que qualquer guerra da história mundial. O Sindicato de Jornalistas Palestinos estima que 246 profissionais foram assassinados desde o dia 7 de outubro de 2023.
Esse número representa mais mortes que a soma de outros sete importantes conflitos: as 1ª e 2ª guerras mundiais, a Guerra Civil Americana, a da Síria, do Vietnã (incluindo os conflitos no Camboja e no Laos), além das guerras na Iugoslávia e na Ucrânia. - (Lucas Pordeus León, para Agência Brasil).
Em recente entrevista à BBC, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou mais uma vez, categoricamente: “Em gaza não tem uma guerra, tem um genocídio” [7].
ANÁLISE DAS POLÍTICAS ATUAIS ACERCA DO PROBLEMA:
A palavra “diplomacia”, que em latim significa “documento dobrado” quando traduzida para o francês passou a significar algo como “a ciência dos diplomas”, sendo “diplomas” os documentos oficiais. Nos papéis dobrados que são os documentos oficiais, o Brasil reconhece o Estado da Palestina desde dezembro de 2010, e as relações Brasil-Palestina remontam a 1975 [8]. No relatório mais recente, encomendado pela ONU, consta que Israel comete contra o povo palestino ao menos quatro dos cinco atos que tipificam Genocídio, segundo a Convenção de Genocídio de 1948 [9], da qual o Brasil é signatário.
Em 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, comparou o genocídio do povo palestino ao holocausto e foi considerado persona non grata em Israel, num espetáculo público em que o embaixador brasileiro em israel foi levado ao Memorial do Holocausto para ser “humilhado” em hebraico. Posteriormente chamado para “consulta” pelo Itamaraty, permaneceu no Brasil desde então. Em pouco tempo chegou por vias oficiais a solicitação (agreement) de estabelecimento de um Embaixador israelense no Brasil (Gali Dagan, anteriormente expulso da Colômbia [10]) que foi cordialmente (no sentido mais passivo e distorcido do termo) ignorada por 8 meses, até que em agosto de 2025, Israel anunciou finalmente o rebaixamento das relações diplomáticas com o Brasil. Apesar disso, o país mantém relações econômicas e comerciais (historicamente deficitárias para o Brasil [11]) com Israel exportando principalmente carne bovina, petróleo e soja - comércio que deveria minimamente estar condicionado à entrada de ajuda humanitária em Gaza. - e importando fertilizante, agrotóxicos e tecnologia com aplicação militar[12].
O Lobby sionista exerce enorme influência sobre a questão nacional. Bandeiras de Israel são vistas em manifestações pró golpe de Estado e Intervenção Militar no Brasil e a ligação entre a extrema direita e o sionismo é expostas em denúncias, como por exemplo, a de que a FLIPEI (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes) foi impedida, por parte da prefeitura de São Paulo, de ser realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em um ataque direto às lutas do movimento anti-fascista e pela libertação do povo palestino [13] à mando de entidades sionistas. Enquanto a família Bolsonaro constrói canais diplomáticos de um Brasil Paralelo, estimulando desde a potência norte-americana, maior aliada de Israel, sanções contra o Brasil, golpes às nossas instituições democráticas, e inflama multidões com as bandeiras estadunidense e israelense acima da nossa própria, o Itamaraty segue apático, passivo e aparentemente desafetado, distante de representar os interesses da nação brasileira e menos ainda a efervescência de nossa cultura.
Manter o tom cordial com genocidas, tentar não parecer hostil é agir de forma apática, cínica, conivente. Representar o Brasil é afetar-se frente à monstruosidade do extermínio de um povo e para que a justiça possa prevalecer, exacerbar as paixões se preciso for, subir o tom do discurso e agir a partir disso de forma igualmente firme e contundente. A qualidade ou o estado de existir a partir do coração nos impõe a luta pelos direitos humanos e no atual contexto histórico: ser humano é reagir. Mas agir com o coração, mais que ser cordial, significa ter coragem.
RECOMENDAÇÕES POLÍTICAS
Parafraseando um ditado popular brasileiro, seria oportuno pensar que: em democracia pouca, minha constituição primeiro. Contradizendo Sérgio Buarque de Holanda, a recomendação política deste policy brief é de que o Itamaraty seja neste momento precisamente cordial, no sentido original do termo, representando o coração da nossa cultura: a de “dar um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela”[14].
Os tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos, assinados a partir de 2004, após uma mudança fundamental na constituição brasileira, podem ser implementados no Brasil, sob ritos específicos (aprovados por três quintos dos votos em cada Casa do Congresso Nacional) para exercer as implicações jurídicas e políticas de uma emenda constitucional, e isto poderia consolidar a decisão da nação brasileira em não compactuar com genocídios de forma alguma, ainda que, num futuro próximo, a extrema direita voltasse a ocupar o mais alto cargo do poder executivo brasileiro e avançasse ainda mais em suas articulações escusas por canais diplomáticos não oficiais para favorecer governos imperialistas e colonialistas que praticam e incitam a barbárie no mundo contemporâneo.
O rebaixamento das relações diplomáticas anunciado por Israel deve necessariamente significar a suspensão imediata das relações comerciais entre os países, inclusive porque é através da diplomacia, nos regimes democráticos, que países constroem não só relações cordiais de afeto, mas acordos econômicos bilaterais e multilaterais. É necessário convocar os brasileiros civis que vivam em Israel a deixar o país, e romper relações diplomáticas de modo oficial, via Itamaraty, redirecionando as commodities que exportamos e que de muitas formas sustentam o Estado genocida a outros mercados, isto enquanto o corpo diplomático brasileiro busca construir um novo tratado internacional robusto com países aliados do Sul Global (geopolítico) que deve versar sobre os direitos humanos a serem protegidos mesmo (e talvez sobretudo) em situações de guerra.
Na prática o Brasil estaria aplicando sanções econômicas à Israel e posicionando-se no protagonismo da luta pelos Direitos Humanos, dando um claro e diplomático recado ao mundo geopolítico de que negociamos única e exclusivamente pelos canais diplomáticos e democráticos oficiais e de que por aqui deve-se respeitar as instituições e o compromisso com a vida humana. Seria um recado de que não temos medo de abrir mão de certas trocas comerciais pelo bem maior da humanidade. Ao Itamaraty, recomenda-se a cordialidade de eleger um arqui-inimigo estratégico e histórico, à nossa altura, e buscar unir o Sul Global em torno da liberdade de um povo não-branco de existir com dignidade, segundo as regras do Direito Internacional Humanitário, mesmo em um mundo sob conflito.
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Notas de rodapé:
[1] Em carta publicada na revista Colégio, número 3, São Paulo, setembro de 1948, e incorporada à terceira edição de Raízes do Brasil, revista pelo autor, José Olympio Editora, Rio, 1956.
[2] Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil,1936, Rio de Janeiro, José Olympio
[6] https://www.cartacapital.com.br/mundo/numero-de-mortos-em-gaza-e-65-maior-que-oficial-diz-estudo/
[10] https://www.metropoles.com/mundo/saiba-quem-e-o-diplomata-pivo-do-rompimento-entre-brasil-e-israel
[13] https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/lobby-sionista-ataca-flipei-que-mudara-de-local/
[14] Ditado popular brasileiro, com origem no “homem do campo”, assim como o Homem Cordial.




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