Às vezes eu tenho a impressão de que a esquerda brasileira, mesmo os seus setores mais eruditos, mesmo os mais radicalizados, não tem verdadeiramente a intenção de fazer revolução.
Talvez eu tenha levado a sério demais tudo o que li na faculdade de Geografia ou nas escolas de formação política pelas quais passei durante os anos em que compus as fileiras de alguns partidos socialistas e comunistas por esse Brasil. Durante os quinze anos em que de mim foi extraída a mais-valia, distribuída, segundo as contas de minha memória, por 32 empresas diferentes, acumulei todas as minhas esperanças empilhadas em montes de livros, amplificadas em falas potentes de camaradas conhecidos, mas foi justamente deste amontoado de possibilidades revolucionárias que aos poucos cresceu em mim um senso de desânimo pela desconexão das pautas com o meu mundo real.
Eu tinha 17, agora tenho 32 e o marxismo não é outro, não discute estratégia mais do que discutia antes. Pauta reforma agrária, mudanças climáticas, política pública de segurança, ação social, legalização das drogas, como se estivéssemos ainda em 1980 (antes que eu tivesse idade alguma). Se utilizam os mesmos exauridos autores, ainda que um esteja a cada hora mais em voga que um outro e que se alternem todos na moda da vez. Analisamos a história como uma sequência de episódios do passado dos quais se faz recortes, fichamentos, highlights, e que condena tudo o que não se coloca explícito da nossa própria experiência a uma desimportância aparentemente casual e inofensiva.
Tenho pensado muito, nestes últimos dias de angústia, que não encontrei nunca, até aqui, por exemplo, autor que tivesse tentado compreender a implicações políticas e sociais na história e na própria formação geográfica do Rio de Janeiro (que hoje pertence às milícias) da formação do Comando Vermelho, nascido durante a ditadura brasileira, na Ilha Grande, em Angra dos Reis - RJ, a partir da mistura de presos “comuns” e presos políticos, como uma legítima organização popular armada de esquerda. Havia uma formação política organizada dentro do Comando Vermelho desde seus primórdios. Havia desenho estratégico e há experiência de luta armada no Comando Vermelho. Mas nunca vi comunista que reivindicasse a legitimidade de uma organização preta, nacional, anti-sistêmica, violenta, armada e direcionada como esta, ou que tivesse disposição de assumir a tarefa de politizar e ajudar seus líderes a orientar a ação de tamanha força de massas. Me pergunto se será mais romantizável, mais moralmente aceitável desenhar a narrativa dos levantes armados brasileiros quando estes são liderados por militares comunistas brancos como Luis Carlos Prestes ou Carlos Lamarca (deixando claro, que nada tenho contra tais sujeitos). Mas a jovem revoltada e literata que ainda habita em mim, se pergunta por que, quando reivindicamos Graciliano Ramos como um dos expoentes brasileiros do comunismo, escolhemos ignorar sua participação ativa na fundação do Comando Vermelho? E como fosse coincidência, tratamos o fato de a facção vermelha perder poder político e ver seus territórios tomados por milícias no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que as igrejas evangélicas instalam-se aí (nas favelas, na periferia da periferia do capitalismo), acendendo aqui, como em todo o mundo, as fagulhas de um fogo adormecido da extrema-direita, elegendo em poucos anos, nestes mesmos territórios conselheiros tutelares, vereadores, deputados, prefeitos, governadores e até presidentes, ligados a estas horrendas milícias. Quer dizer que a esquerda disputa no campo da influência ideológica, moral, virtual, mas aceita perder, aquilo que no âmago das multidões nem sequer reivindica como seu? A disputa de poder fazemos apenas por vias ascéticas, etéreas, narrativas? Ignoramos o Comando Vermelho por moralismo, por medo, por preguiça? Será que é mais fácil passar uma vida discutindo experiências de levantes armados mais distantes de nós (tanto no tempo quanto no espaço) seja na Argélia, em Angola, em Cuba… ou será que a história do Comando Vermelho é, para a construção de uma revolução brasileira, algo apenas desimportante?
Teoricamente concordamos com Frantz Fanon quando ele nos diz, em Os condenados da Terra, que “… o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior” (2022, p. 58). Mas será que nos colocamos dispostos a derrotar o colonialismo, de fato?
Estamos dispostos à violência revolucionária?
É já no prefácio ao livro mais relevante sobre o assunto, Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado, de Carlos Amorim, publicado em 1993 e agraciado posteriormente com um prêmio Jabuti, que o afetado Jorge Pontual nos dá as primeiras pistas de seu franco mau-caratismo burguês e da importância de que a esquerda recontasse a história deste fenômeno social a partir de uma perspectiva de classe:
"Criado na cadeia onde a repressão jogou, juntos, presos políticos e comuns, cresceu no vazio político e social ao qual o capitalismo selvagem relegou a grande massa, o povo das favelas, da periferia. Filho da perversa distribuição de renda, da falta de canais de participação política para esse povo massacrado, o Comando Vermelho pôde parodiar impunemente as organizações de esquerda da luta armada, seu jargão, suas táticas de guerrilha urbana, sua rígida linha de comando. E o que é pior: com sucesso."
Depois de praguejar ainda um bocado, com ares de gravidade, contra este “câncer político”, e afirmar categoricamente que “não só os favelados sustentam o comando vermelho”… mas “Também os filhos da classe média e os yuppies que consomem drogas…”, argumento caduco que impera hoje ainda entre os malditos moralistas, é que o jornalista acerta uma profecia, ou talvez crie ele, ali mesmo, a grande estratégia que a extrema-direita implementaria na disputa de poder no Rio de Janeiro e no Brasil que vimos acontecer a partir da aliança entre as milícias, as igrejas e a grande mídia burguesa (da qual Pontual, aliás, orgulhosamente, faz parte até os dias atuais):
"Promessas vazias e demagogia não arranham o poder do Comando Vermelho. E os políticos continuam a barganhar votos em alianças secretas com os traficantes. Em breve teremos as bancadas do Comando Vermelho. Se nada mudar, logo os líderes do CV se tornarão tão "legítimos" e "populares" quanto seus aliados, os bicheiros. Pode ser até que, no vazio deixado pela prisão da cúpula do bicho, o CV espalhe ainda mais os seus tentáculos. Em vez de desfilar clandestinos, nas baterias e alas, seus chefes subirão aos carros e camarotes na Avenida. E o sistema os absorverá, nas parcerias do poder".
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Como ensejava eu dizer a vocês, sou uma mulher não-branca, pobre, periférica que cresceu entre as ruas selvagens do Rio de Janeiro e que desde sempre estudou filosofia e estratégia política a partir da vivência dos sujeitos que me rodeavam como fonte única de esperança para a construção de uma realidade mais humana entre os nossos. “Guerra aos senhores” foi o meu primeiro mantra. Identificar e apontar (para poder punir) “os senhores”, porém, é sempre um dos problemas centrais que enfrenta o proletariado. Em um primeiro momento porque fomos contaminados de uma visão católico-burguesa, francamente colonial, que domina, a título de exemplo banal, toda a minha família e o meu entorno cultural (portanto minha educação), moralista, de que o crime é sempre errado, é sempre uma via escusa que não compensa, é imoral, é ilegal, e talvez não engorde, mas certamente mata. Em um segundo momento porque a falácia de uma ascensão social possível tem como chave principal o trabalho, a fé, a atitude “nobre” de fazer o que “enobrece”. Como se o sistema que nos acachapasse todos os dias no caminho para um trabalho humilhante e análogo à escravidão (tanto do corpo quanto do espírito) não fosse motivo suficiente pra me rebelar de modo algum, menos ainda é argumento plausível para recorrer à força do sombrio e da violência armada. Meu ódio, aos olhos da moral cristã, que me queria grata, resignada e quieta, era (e me corrói saber que até na militância mais à esquerda é até hoje) injustificável, impuro, uma corruptela do belo, do bom e do justo que buscava eu na construção de um mundo ideal. É um monstro abominável minha sinceridade quando vos fala. É de um pragmatismo irreal e uma afronta da minha parte calcular que arma se combate com arma.
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Foi Mao Tsé-Tung quem primeiro me ensinou a olhar as coisas a partir de suas contradições, a caminhar por uma teoria do conhecimento que partisse antes da vivência prática de um sujeito oprimido, e foi Althusser que me alertou à existência dos Aparelhos Ideológicos e Repressivos do Estado. Foi o Verbo sagrado do Príncipe Arjuna que me incentivou a lutar pelos meus e validou pra mim a guerra justa contra aqueles que nos pretendem subjugar. Foi Marx quem me deu argumentos mais sólidos pra tentar despertar, por onde quer que eu vendesse minha força de trabalho, um senso de consciência de classe entre nós, os explorados violentados de todo o mundo. Mas foi em contato com o outro, meu extremo oposto, o branco-burguês-filho-da-puta, o paga-pau de experiências gringas, e mesmo com o típico rapazinho esquerda-caviar que cita Foucault pra lá e pra cá, como se inventasse a própria roda, sem nunca ter pisado sequer nas antessalas de um presídio, que eu pude notar o quanto a minha vivência de pobre-proletária-carioca-fudida-de-berço lhes era completamente alheia e o quanto ainda a gente precisaria a si mesmo explicar. Página 1 de um livro escrito por um branco metido sobre a organização popular armada mais importante que o Rio de Janeiro já viu e você pode comprovar a distância abissal que o intelectual burguês toma do objeto de fetiche a que ele escolhe chamar de objeto de estudo:
"Durante doze anos recolhi depoimentos, opiniões e informações oficiais sobre o Comando Vermelho. Houve momentos em que foi necessário descer ao submundo para ouvir uma história original. Foi preciso andar pelas favelas, olhar de perto a cara do crime. A ideia da pesquisa surgiu depois que assisti a uma violenta batalha entre policiais e uma das quadrilhas ligadas à organização. No final, havia centenas de policiais contra um bandido. Ele resistiu durante onze horas num pequeno apartamento na Ilha do Governador, cerca do pelo que havia de melhor na polícia carioca. Uma cena libanesa. Quatro mil tiros foram disparados. A intensidade do combate e a determinação do assaltante de bancos deixaram em minha mente uma pergunta que levei muito tempo para responder: por que alguém desiste de viver apenas para manter de pé um juramento de lealdade entre criminosos comuns? Para o assaltante cercado, o companheirismo era mais importante do que a vida. Não é fácil entender."
Mas esse estranhamento com a realidade do pobre favelado, essa dificuldade cognitiva frente à solidariedade de classe daqueles que não possuem amparo algum, a não ser na resistência dos seus, não é uma realidade apenas entre a burguesia intelectual colonizada de direita, mas também em uma esquerda que à moda do referido autor, no referido ilustre livro, passa rápido e por alto pelos laços intrincados entre o chamado “exército vermelho”, que em 1990 dominava 90% das favelas do Rio, e seus análogos movimentos na América Latina, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, por exemplo, que tinham no tráfico de drogas, no sequestro de milionários e em assaltos a bancos (exatamente como o Comando Vermelho) sua fonte de renda principal (e preferencial) que engordava os caixas de um movimento que se pretendia revolucionário. Quer dizer que quando o movimento vende drogas sua legitimidade se esvai? Quer dizer que quando exerce a violência do opressor contra seus sustentáculos, passou dos limites e comprou sua passagem ao descrédito total e absoluto? Então quer dizer que vermelho movimento na faculdade embranquecida é importante, mas vermelho e preto movimento quando sobe o morro já vai longe demais? Pra fazer revolução, dinheiro a gente faz de pix em pix?
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Muito se fala na ação social e na lei implacável que o Comando Vermelho exercia nas comunidades que dominava, onde vale lembrar: o estupro, a violência entre os moradores, o feminicídio e os assaltos avulsos eram terminantemente proibidos, punidos com a morte ou qualquer horror ainda pior. Sabemos ainda que o tráfico tinha plano de carreira para seus funcionários, auxílio financeiro às famílias de seus companheiros assassinados, auxílio médico e emergencial, grupos de advogados competentes à disposição do movimento, proteção ao morador, organização hierárquica rígida, e que a violência se guardava aos outros, aos de fora, aos “alemão”, aos que eram “eles” e não “nós”. Hoje, porém, quem ocupa este mesmo espaço, ainda vácuo do poder público institucionalizado, e oferece assistência social às favelas cariocas, continua não sendo o Estado. São as igrejas evangélicas, que cobram seu preço em dinheiro e em influência e que não devolvem através de suas milícias qualquer tipo de segurança ou de vida minimamente digna à comunidade. Assim antes, como agora, a polícia e o exército, o braço armado e a mão inimiga do Estado, previamente autorizada a puxar o gatilho contra o preto-pobre, é quem violenta diariamente a parcela da população que o direito burguês pune com severidade e frequência típicas de uma guerra civil interminável.
Se antes o mapa do Rio de Janeiro estava dominado por uma facção que tinha princípios éticos admiráveis, tática e estratégia de guerrilha revolucionária eficientes, agora o cenário é de uma barbárie generalizada, onde a milícia se alimenta das almas condenadas à própria sorte e exerce o papel de sustentáculo da violenta ação colonial-imperialista sobre as massas que deveríamos nós estar encarregados de educar. E o silêncio retumbante (inocente ou acovardado) dos líderes da esquerda brasileira sobre a importância da única frente de massas, autoproclamadamente vermelha, capaz de fazer frente, porque armada e bem treinada, aos grupos paramilitares fascistas que assassinam e encarceram nossos jovens cumprindo a política estadunidense de uma guerra que se diz às drogas, mas que é uma guerra aos pobres, é o que mais dói nos meus ouvidos. Dói em mim, me desanima, saber que a revolução, se pretender nascer das massas, se pretender observar a reação justa à violência que o colonizado sofre e ousar pôr em prática certo tipo de medida drástica de “paz entre nós e guerra aos senhores” haverá de morrer sufocada. Haverá de cair inerte no asfalto quente, como nele caísse não vida, mas palavra. Haverá de sofrer o apagamento histórico das revoluções desapoiadas pelas massas de engomadinhos que não frequentam a vida das encruzilhadas, que não compartilham comigo as calçadas e que devem até entrar em algum paraíso depois de uma vida inteirinha produzindo teoria abstrata que na prática, de fato, não enxerga quase nada.

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